26 junho, 2011

Lee aqui tão perto


Lee Miller, The Bürgermeister`s daughter, Town Hall, Leipzig, 1945
© Lee Miller Archives



A fundação Novacaixagalicia na Corunha inaugurou a primeira retrospectiva de Lee Miller em Espanha. Legendary Lee Miller inclui cerca de 100 fotografias captadas entre 1929 e 1964. Através deste conjunto, o talento da fotógrafa americana revela-se em várias abordagens: moda, guerra, crónica social e crónica do quotidiano de alguns dos mais importantes artistas do século XX. Depois da Corunha, em Setembro o trabalho de Lee Miller desce até Vigo.

Conhecer Lee (06.09.2006)

Lee Miller (Poughkeepsie, 1907 – Sussex, 1977) começou por posar para fotógrafos (Steichen, Hoyningen-Huene, Genthe) em Nova Iorque. Fartou-se da vida de modelo e passou-se para o outro lado do Atlântico (Paris, 1929) e da objectiva, pela mão de Man Ray, de quem foi assistente, amante e musa. O Surrealismo estava lá, claro. E Miller começou por aí, construindo imagens à procura do subconsciente, do sonho e do delírio. Montou um estúdio de fotografia na capital francesa, dedicou-se ao retrato e à fotografia de moda.

De volta a Nova Iorque (1932), tentou a mesma sorte. O negócio corria bem até que surgiu Aziz Eloui Bey, um abastado egípcio com quem veio a casar. Fecha a porta do estúdio e muda-se para o Cairo. No Egipto apaixona-se pelo deserto, fotografa-o.

Em 1937, o Surrealismo veio ter consigo outra vez. Tinha um rosto, chamava-se Roland Penrose, artista interessado nas profundezas do espírito humano, aquele que viria a ser o segundo marido de Lee.

Pouco antes das armas se começarem a fazer ouvir na II Guerra Mundial, o casal muda-se para Londres. Aí Lee Miller aceita um convite da Vogue para trabalhar como staff photographer. A um ano do fim do conflito, a revista manda-a para a frente de combate. Lee forma equipa com o fotógrafo da Life David E. Scherman. Torna-se numa das poucas mulheres a registar a Guerra na Europa. 20 dias depois do Dia D, desembarca na Normandia. Fotografa o cerco a St. Malo, a Libertação de Paris, os combates no Luxemburgo e na Alsácia, o encontro entre russos e americanos em Torgau e a libertação dos campos de concentração de Buchenwald e Dachau. Em Munique, regista as casas de Hitler e Eva Braun. Numa atitude que mostra bem o seu espírito desenvolto e provocatório, pede a Scherman que a fotografe a refrescar-se na banheira do ditador alemão. Com a Alemanha capitulada, parte mais para leste no rasto dos farrapos do nazismo, do horror que ficou.

De regresso a Londres, trabalha mais dois anos para a Vogue fazendo retratos de celebridades e moda. Depois do casamento com Penrose (1947) dedica-se sobretudo a retratar artistas. A Farley Farm House, casa do casal em Sussex, torna-se um local de visita obrigatória para a vanguarda artística que passava por Inglaterra.

Morre aos 70 anos vítima de um cancro. Tanto ela como o marido pouco fizeram para promover o seu trabalho como fotógrafa. No início dos anos 80, o filho de ambos, Antony, começa a estudar, conservar e promover as imagens da mãe.

dialogar



Um diálogo imaginado com a Câmara Clara de Roland Barthes? A coisa promete...
A sinopse de novo livro de James Elkins:


In What Photography Is, James Elkins examines the strange and alluring power of photography in the same provocative and evocative manner as he explored oil painting in his best-selling What Painting Is. In the course of an extended imaginary dialogue with Roland Barthes's Camera Lucida, Elkins argues that photography is also about meaninglessness -its apparently endless capacity to show us things that we do not want or need to see -and also about pain, because extremely powerful images can sear permanently into our consciousness. Extensively illustrated with a surprising range of images, the book demonstrates that what makes photography uniquely powerful is its ability to express the difficulty -physical, psychological, emotional, and aesthetic -of the act of seeing.


What Photography Is, James Elkins, Routledge, 2011

Alécio


Alécio de Andrade, da série Le Louvre et et ses Visiteurs



Louvre
Felizes no museu
Lucinda Canelas
, Público, P2 (11.06.2011)

De Leica na mão e com vontade de dançar, Alécio de Andrade caminhava pelas ruas de Paris. Usava muitas vezes esta imagem da dança quando falava da sua relação com o que fotografava. “As pessoas não se apercebem da minha chegada. Preciso provocar a dança”, dizia. Ouvimos Patricia Newcomer, sua mulher, falar deste fotógrafo brasileiro e ficamos com a sensação de que teríamos gostado de o conhecer, de conversar com ele sobre poesia e pintura, de o ver ao piano. Outra vez Alécio: “[As pessoas] estão lá, como para me permitir conferir um certo ritmo à minha dança. Quero dizer que estão presentes de corpo inteiro. Os pés são muito importantes, precisam estar bem colocados, precisam escolher o seu território. O corpo inteiro determina o ângulo de onde o olho vê. É o que chamo de contradança.”

Alécio de Andrade parece ter dançado com milhares de visitantes do Museu do Louvre, em Paris, durante 40 anos. Começou a fotografá-los quando deixou o Brasil e só terminou em 2002, um ano antes da sua morte. O resultado está nas 62 imagens de Le Louvre et ses Visiteurs (também o nome do livro publicado em 2009 pelas edições Le Passage), que o PHotoEspaña expõem na Casa da América, em Madrid, até 11 de Setembro. Escolhê-las, das 12 mil que Alécio de Andrade tirou enquanto percorria as salas e corredores do museu parisiense, foi “muito difícil”, disse Patricia ao P2, na véspera da inauguração. “Todas me pareciam maravilhosas. Alécio tinha o projecto do livro, mas fez maquetas sucessivas e nunca ficava satisfeito.” Foi ela que acabou a tarefa, com a ajuda de um amigo.

Todas a preto e branco, com legendas em que à data se junta informação sobre os quadros ou esculturas que nelas figuram, as fotografias de Le Louvre et ses Visiteurs são uma viagem pela história da arte fazendo, ao mesmo tempo, um retrato do próprio museu, que no ano passado teve 8,5 milhões de visitantes.

“Com humor e poesia mas com a precisão de um etnólogo, o fotógrafo fixou a variedade das gerações, das atitudes, dos gestos, da vestimenta, revelando um espantoso abandono dos corpos, uma liberdade”, escreveu o sociólogo e filósofo francês Edgar Morin. Quem percorre a exposição caminha com o fotógrafo pelo museu, sempre com a sensação de que olha as obras de arte espreitando por cima do ombro das pessoas que cabem na Leica de Alécio de Andrade. E encontra casais de várias idades, mulheres a quem o cansaço obriga a descalçar os sapatos, crianças exaustas nos colos dos pais e nos bancos das galerias, dois rapazes que parecem ter trocado uma partida de ténis pela Dama do Arminho, de Leonardo da Vinci. É o dia-a-dia de um museu, com pessoas surpresas, aborrecidas ou curiosas que se encontram com a arte e os artistas e deles se apropriam à sua maneira.

Talvez duas das imagens mais deliciosas da exposição sejam a das três freiras que, de mãos dadas, admiram As Três Graças, de Jean-Baptiste Regnault, e a dos filhos do fotógrafo, Balthazar e Florêncio, rendidos aos encantos da odalisca de Ingres.

“O seu olhar é sempre delicado”, diz Patricia, para quem o mais comovente das fotografias do marido é “sua sensibilidade subtil, sua ternura subtil, seu humor subtil”. Conheceram-se em Paris no Outono de 1982. Foi o escritor argentino Julio Cortázar, um amigo comum, que os apresentou. “Apaixonámo-nos em 1983 (Alécio nasceu em 1938); nosso primeiro filho escolheu o ninho em 1984 (nasci em 1948). Encontrei estas datas entre as anotações de Alécio quando ele morreu.”

Fotógrafo, mas também músico e poeta, Alécio de Andrade foi o primeiro brasileiro na prestigiada agência Magnum (entre 1970 e 1976) e colaborou com a Elle, a Newsweek, a American Photographer e a Nouvel Observateur. Os amigos elogiavam-lhe a sensibilidade, a cultura, a lealdade e uma inquietude permanente.

“A fotografia é como a poesia”, escreveu. “Algo lhe é proporcionado. Uma certa coisa passa, na ordem do efémero. É preciso estar em sincronia. Existem coisas, fotografias, que não tenho a impressão de ter feito.” Bach, Haydn e Schubert passavam muitas vezes pelo piano que tocava todos os dias. Precisava da música e da poesia, e era capaz de se sentar uma tarde inteira num bistrot só “olhando”. Carlos Drummond de Andrade, poeta que admirava muitíssimo, deixou um texto sobre o dom de Alécio de Andrade: “Olha, descobre este segredo: uma coisa são duas — ela mesma e sua imagem. (…) A imagem é um ser vivo, como os demais seres. E quer penetrar em teu espírito, habitá-lo como hóspede afectuoso. (…) Não pode haver melhor uso da fotografia do que este de alimentar-nos da porção perdida de nossa alma.” Alécio sabia disso.





Alécio de Andrade, da série Le Louvre et et ses Visiteurs

24 junho, 2011

prémios


Thomas Ruff
© Gianfranco Tripodo


O grande prémio do PHotoEspaña 2011 foi atribuído a Thomas Ruff (Zell am Harmersbach, Alemanha, 1958). Este reconhecimento foi atribuído como reconhecimento "da sua personalidade artística meticulosa e coerente que lhe valeu fama mundial". Ruff é um dos discípulos de Bernd e Hilla Becher, da Escola de Düsseldorf. Um comunicado do festival refere ainda "a construção de uma obra em âmbitos temáticos diversificados, utilizando a cor como matéria expressiva, adiantando-se no retoque digital e destacando-se pela sua constante experimentação em torno das propriedades da fotografia". O Prémio PhotoEspaña já foi atribuído a Graciela Iturbide, Malick Sidibé, Martin Parr, Robert Frank, Hiroshi Sugimoto, William Klein, William Eggleston, Helena Almeida, Nan Goldin, Duane Michals, Chema Madoz, Luis González Palma e Josef Koudelka.

O prémio Premio Bartolomé Ros que reconhece a melhor trajectória na fotografia espanhola foi concedido a Chema Madoz "pela originalidade da sua obra e a solidez do seu precurso, com uma linguagem conceptual e muito sugestiva". As outras edições do prémio reconheceram Chema Conesa, Isabel Muñoz, Ricard Terré, Javier Vallhonrat, Marta Gili, Alejandro Castellote, a livraria Kowasa, Joan Fontcuberta, Alberto García-Alix, Juan Manuel Castro Prieto, Ramón Masats, Cristina García Rodero e Publio López Mondéjar.

A galeria Helga de Alvear venceu o prémio Festival Off com a exposição Ten Thousand Waves, de Isaac Julien. Este prémio reconhece o esforço das galerias madrilenas por apresentarem uma expposição específica para o PHotoEspaña.

19 junho, 2011

Luísa (1956-2011)




Morreu Luísa Costa Dias, alma e motor do Arquivo Fotográfico de Lisboa
Sérgio B. Gomes, Público Online (19.06.2011)

Luísa Costa Dias foi a “alma”, a principal impulsionadora de tudo o que se realizou no Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa. Comissariou dezenas de exposições e esteve na origem das bienais Lisboa Photo (2003, 2005). Morreu ontem no Hospital Pulido Valente. Tinha 55 anos e sofria de cancro no pulmão.

Os que a conheciam e que com ela trabalharam apontam-lhe uma “personalidade discreta”, alguém que “preferia trabalhar nos bastidores”, mas reconhecem-lhe “um papel fundamental” tanto na organização de exposições e edição de livros de fotografia como na angariação de novos espólios fotográficos que, desde 1994, não pararam de entrar no Arquivo. “Aquilo que o Arquivo foi, a dinâmica que conseguiu, deve-se ao trabalho e dedicação da Luísa. Foi, sem dúvida, a alma desta casa”, disse ao PÚBLICO Luís Pavão, fotógrafo e conservador da colecção do Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa.

O comissário Sérgio Mah (que foi o nome escolhido por Luísa Costa Dias para dirigir as duas edições do Lisboa Photo) também sublinha o trato “discreto e elegante” e lembra a “dedicação e proximidade” com que gostava de trabalhar nos projectos em que se envolvia. “Fazia as coisas acontecerem mesmo quando enfrentava enormes dificuldades”, lembra Mah.

Luísa Costa Dias comissariou muitas das exposições que passaram pelo Arquivo, das quais se destacam, nos últimos anos, Lisboa à Beira Tejo (2010), Alfredo Cunha Fotografias (2010), Da Avenida D. Amélia à Avenida Almirante Reis (2011). Foi ainda uma das principais mentoras da LisboaPhoto, Bienal de Fotografia, com duas edições (2003 e 2005), festivais nos quais comissariou as exposições Colecção Ferreira da Cunha (2003) e Corpo diferenciado (2005), esta última sobre o acervo fotográfico do Instituto de Medicina Legal de Lisboa. Nos últimos tempos, trabalhava na exposição Avenida de Roma Fotografias 1950-2011. Como comissária independente, destaca-se a exposição Oui Non sobre a obra de Gérard Castello-Lopes, no Centro Cultural de Belém, em 2004. Como comissária, Luísa Costa Dias tinha preferência “pela fotografia dita de autor, mais directa e documental”, lembra Pavão.

”Fotografias íntimas e transparentes”
“A Luísa deixou de olhar por si para olhar pelos outros”, diz o fotógrafo José Manuel Rodrigues aludindo ao seu trabalho como fotógrafa que é pouco conhecido. “As fotografias da Luísa são íntimas e transparentes como ela gostava de ser”. Rodrigues destaca a “serenidade, a competência e a honestidade” de Luísa Costa Dias que era das poucas pessoas que visitava o seu atelier com regularidade para saber novidades do seu trabalho. “Chegava e dizia: ‘Mostra lá o que andas a fazer’. Queria ver tudo - provas, negativos, contactos. Encorajava-nos a fazer coisas.” Além disso, “tinha uma grande paciência com os fotógrafos”.

A investigadora Emília Tavares sublinha o mérito de Luísa Costa Dias na recolha e descoberta de novos espólios para a fotografia portuguesa. “Desde sempre, esse grande trabalho deve-se à Luísa. Trabalhava na sombra, mas grande parte do acervo do Arquivo é fruto do seu empenho”, disse ao PÚBLICO. Tavares lembra “um trabalho fundamental para o conhecimento e para a construção de uma memória histórica e crítica da fotografia portuguesa”. Numa nota enviada ao PÚBLICO, a investigadora, amiga de Luísa Costa Dias, recorda a directora do Arquivo como alguém com “uma sensibilidade muito especial para reconhecer a qualidade da obra fotográfica e o talento das pessoas que ao longo dos anos trouxe a colaborar consigo”.

Paula Figueiredo, fotógrafa, investigadora e ex-responsável do serviço educativo do Arquivo, reconhece também que Luísa Costa Dias era “a alma” daquela que foi uma das mais activas instituições ligadas à fotografia em Portugal nos últimos anos. “Era muito exigente em relação a tudo o que fazia.”

O corpo de Luísa Costa Dias estará em câmara-ardente esta segunda-feira a partir das 12h00 na igreja de S. Sebastião da Pedreira, em Lisboa. O funeral realiza-se na terça-feira e sai às 10h30 para o cemitério de S. João do Estoril.

15 junho, 2011

Descubrimientos PHE11


Fernando Brito, Tus pasos se perdieron con el paisaje
© Fernando Brito

O mexicano Fernando Brito venceu o prémio Descubrimientos PHE11 com a série Tus pasos se perdieron con el paisaje, imagens que mostram cádaveres e cenas de crime que fazem parte do quotidiano de muitas localidade do México. O conjunto tenta chamar a atenção para o clima de violência permanente em que está mergulhado este país norte-americano e dá pistas para uma reflexão sobre o papel de quem assiste, inerte, a esta matança.
O trabalho vencedor será objecto de uma exposição individial da próxima edição do PHotoEspaña. Do juri faziam parte Thomas Seelig, comissário de fotografia do Winterthur Fotomuseum de Zurich, Edward Robinson, comissário de fotografia do Los Angeles Museum of Art LACMA e Enrico Bossan, director Colors Magazine e comissário do New York Festival 2011.

fantasmas

Madge Donohoe, Skotograph, c. 1930


A investigadora e professora universitária Margarida Medeiros lançou um novo ensaio sobre as imagens fotográficas. Fotografia e Verdade. Uma história de fantasmas (Assírio & Alvim) aborda "a forma como a natureza automática e indicial da fotografia se prestou à constituição de um sistema de verdade, de prova". É neste território que se inscrevem as imagens que mostram fantasmas, espectros, almas do outro mundo que podem ser representandas mas não comprovadas. A crítica de Nuno Crespo ao livro de Margarida Medeiros, autora de Fotografia e Narcisismo – o auto-retrato contemporâneo (Assírio & Alvim, 2000), está aqui

13 junho, 2011

em português

Robert Mapplethorpe e Patti Smith, homotography 6



A Quetzal vai editar em português Just Kids (Apenas Miúdos, nas livrarias a partir de 17 de Junho), as histórias que fizeram a história da vivência, da amizade e da cumplicidade umbilical de Patti Smith e do fotógrafo Robert Mapplethorpe. Just Kids ganhou no ano passado o National Book Award nos EUA na categoria de ensaio.

Aquilo que nos engancha em Apenas Miúdos é o retrato não só de uma época mítica de Brooklyn e do Chelse Hotel - finais de 60, princípios de 70, Burroughs e Ginsberg passeando pelas páginas -, mas sobretudo de um par de artistas que acreditavam o suficiente na sua arte para a ela se entregarem abnegadamente.

A crítica de Gonçalo Frota está no Ípsilon Online está aqui

Preâmbulo

Eu estava a dormir quando ele morreu. Tinha telefonado para o hospital, para lhe dizer mais uma vez boa noite, mas ele estava inconsciente, devido às doses de morfina. Ouvi a respiração esforçada dele pelo telefone. Fiquei em pé junto da secretária com o auscultador na mão, sabendo que jamais tornaria a ouvi-lo.

Mais tarde arrumei serenamente as minhas coisas, o meu caderno e a caneta de tinta permanente. O tinteiro azul-cobalto que fora dele. A minha chávena persa, o meu coração púrpura, um tabuleiro com dentinhos de leite. Subi vagarosamente as escadas, contando os degraus, catorze ao todo, um após o outro. Aconcheguei o cobertor ao bebé que estava no berço, beijei o meu filho enquanto ele dormia, e a seguir deitei-me ao lado do meu marido e rezei as minhas orações. Ele ainda está vivo, lembro-me eu de ter murmurado. A seguir dormi.

Acordei cedo e quando ia a descer as escadas soube que ele morrera. Tudo estava em silêncio, menos o som do televisor que eu deixara aceso durante a noite. Fui atraída para o ecrã enquanto a Tosca declarava, com poder e pesar, a sua paixão pelo pintor Cavaradossi. Estava uma fria manhã de Março e vesti o meu camisolão.

Subi os estores e a claridade entrou no estúdio. Alisei a manta grossa que cobria o meu cadeirão e escolhi um livro de pintura de Odilon Redon. Abri-o na imagem de uma cabeça de mulher a flutuar num pequeno mar. Les yeux clos. Um universo ainda não assinalado contido por detrás das pálidas pálpebras. O telefone tocou e levantei-me para ir atendê-lo.

Era o Edward, o irmão mais novo do Robert. Contou que, tal como me prometera, tinha dado ao Robert um último beijo por mim. Fiquei imóvel por uns instantes, e depois, lentamente, como num sonho, regressei ao meu cadeirão. Nesse momento a Tosca iniciou a grande ária «Vissi d’arte». Vivi pelo amor, vivi pela Arte. Fechei os olhos, e entrelacei as mãos. A Providência discernira como seria a minha despedida.


Apenas Miúdos, Patti Smith, tradução de Jorge Pereirinha Pires, 2011, Quetzal



Robert Mapplethorpe, Patti Smith, 1978

11 junho, 2011

365


Valter Vinagre, Um Diário da República, Madeira, 2010
© Valter Vinagre

Não há nada semelhante em Portugal. E acho que nunca houve - um projecto com a ambição e a qualidade do colectivo [kameraphoto]. Dá-nos alento, mostra-nos caminhos, faz-nos pensar e faz-nos acreditar que é possível manter em Portugal uma estrutura colectiva de fotografia que trabalha para além da espuma dos dias. Já não é a primeira vez (e não será a última, certamente) que o grupo se mete ao caminho para tomar o pulso do país, mas nunca com a dimensão do projecto Um Diário da República que se propunha "tão simplesmente" fotografar Portugal durante os 365 dias do ano em que se comemoraram os 100 anos da República. A galeria de imagem foi crescendo aqui ao longo dos meses com um espírito errático e solto de qualquer esquema programático, procurando apenas dar uma representação geográfica do país tão diversificada quanto possível.

Com inteira justiça, a exposição Um Diário da República, comissariada por Guillaume Pazat e Sandra Rocha, foi escolhida pela embaixada de Portugal em Madrid e pelo Instituto Camões para representar Portugal no OpenPHoto Cuenca, um conjunto de mostras de vários países europeus integradas no PHotoEspaña, o festival de fotografia madrileno que arrancou na semana passada. Os comissários escolheram 80 das 365 imagens (uma por cada dia de 2010) que foram já disponibilizadas na página online do projecto. Depois de Cuenca, a exposição vem para o Porto (Fundação EDP), no final deste ano. A partir deste trabalho foi publicado também um livro, DR - Um Diário da República, disponível para venda na KGaleria, no Bairro Alto, em Lisboa.

novo prémio

J. R. Eyerman, actor Dan Metzger, Glendale, EUA, 1958
© Time Inc.


A empresa farmacêutica Grünenthal, líder mundial no tratamento da dor, lançou um prémio de fotografia, no valor de 10 mil euros. Os trabalhos devem estar relacionados com o tema genérico da dor (Que a Dor não seja mais do que uma recordação). Para além do primeiro prémio serão entregues três menções honrosas. O concurso está aberto a fotógrafos portugueses e espanhóis e os portfólios devem ser enviados entre 20 de Agosto e 20 de Setembro. O júri é composto por Alberto Schommer (fotógrafo), Duarte Correia (presidente da Associação Portuguesa para o Estudo da Dor), Guillermo Solana (conservador-chefe do Museu Thyssen-Bornemisza), Ivânia de Mendonça Gallo (directora da Feira de Arte Contemporânea Arte Lisboa), Manuel Alberto Camba (presidente da Sociedade Espanhola da Dor), Óscar Alonso Molina (crítico de arte e comissário independente) e Pierre Gonnord (fotógrafo).


Mais informações aqui

07 junho, 2011

de dentro

© Filipe Casaca


A generalidade das imagens que captam o universo de intimidade dos seus autores e o âmago da sua vivência - a casa - estão associadas a um certo modo de ver intrusivo, aquele que nos oferece a oportunidade de espreitar pelo buraco da fechadura, que nos faz assistência de parcelas de existência marcadas pela rotina para as quais não se fazem convites. É uma proposta visual cada vez mais seca de significados e dentro da qual se procuram afirmar e enquadrar novas liguagens documentais e conceptuais relacionadas, por exemplo, com o registo de câmaras de segurança ou com a fotografia vernacular.

É um exercício sempre arriscado, mas a julgar pelo título da exposição que Filipe Casaca inaugura hoje na galeria Pente 10 - a minha casa é onde estás -, parece que a intenção é de nos colocar dentro de uma narrativa de cumplicidades que apesar de enclausurada no espaço físico de uma casa se revela totalmente livre para nos mostrar a poética dos pequenos nadas de todos os dias, a sensualidade dos corpos ou o maravilhamento pela invasão da luz a bater nos objectos, na pele. É uma estratégia que pode fazer esquecer o mais puro voyeurismo a favor da mais simples contemplação.

Filipe Casacaa minha casa é onde estás
Pente 10 – Travessa da Fábrica dos Pentes, 10 (ao jardim das Amoreiras), Lisboa
Até 31 de Julho

01 junho, 2011

irmãos

Gustave Caillebotte, Festa de barcos
Cortesia Comité Caillebotte, Paris



Lembro-me bem do momento. Ouvi um nome estranho - Caillebotte. Garantiram que o seu impressionismo pictórico vinha da fotografia - os enquadramentos, as figuras cortadas, a ousadia de planos, a instanteneidade... Fui confirmar, ver e ler e não mais esqueci o nome e a obra.

Gustave Caillebotte foi um experimentador e um patrono das artes impressionistas no último quarto do século XIX. Depois de herdar a fortuna do pai e da mãe, financiou vários artistas empenhados em retratar a realidade com o máximo de proximidade sensorial. Para além de mecenas, Caillebotte pintava com a despreocupação dos homens livres das amarras da subsistência. A influência da linguagem fotográfica na sua obra é conhecida e reconhecida. Já a proximidade (e influência?) da obra fotográfica do seu irmão, Martial, no seu trabalho era desconhecida.

O museu parisiense Jacquemart-André propõe desvendar um pouco dessa cumplicidade através da exposição Dans l'intimité des frères , Peintre et photographe, onde se revelam os cruzamentos da pintura impressionista com a fotografia e o universo artístico e íntimo dos irmãos Caillebotte. O espólio fotográfico de Martial, também compositor e pianista, revela afinidades com os temas representados nas telas de Gustave: vistas de Paris a partir de pontos de vista altos, paisagens à beira-rio, jardins... pela primeira vez as telas de Gustave (algumas das quais nunca vistas em público) são mostradas ao lado das fotografias de Martial.




Martial Caillebotte, Maurice Minoret a remar © D.R./colecção privada


O Museu tem disponível um site dedicado à exposição aqui

conhecer


Adelino Lyon de Castro


No dia em que se assinalaram os 100 anos da abertura do Museu do Chiado, a 26 de Maio, foi lançado o catálogo da exposição Adelino Lyon de Castro - O Fardo das Imagens, comissariada por Emília Tavares. O núcleo de imagens escolhido (a partir do espólio depositado no Museu) revela bem o talento e a audácia de mais um fotógrafo que injustamente se tem mantido na escuridão do arquivo e no esquecimento de quase todos. Espera-se que a concretização desta exposição possa trazer à luz novas pistas de entendimento da obra fotográfica de Adelino Lyon de Castro. Depois do que está à vista no Museu do Chiado, resulta evidente que a etiqueta do salonismo bacoco que foi colada a quase toda a fotografia que se fez em Portugal nos anos 40 e 50 deixa de fazer sentido.
A mostra do Museu do Chiado, concebida de forma exemplar, ainda pode ser visitada até ao dia 12 de Junho. Este é o texto publicado pouco depois da inauguração:

Adelino Lyon de Castro - O fotógrafo cúmplice
Lucinda Canelas, P2, Público (11.05.2011)

Adelino Lyon de Castro não é um fotógrafo neo-realista. Mas quem, olhando para as suas
imagens, se lembra de escritores como Alves Redol ou Carlos de Oliveira e não é um especialista na fotografia portuguesa dos anos de 1940 e 1950 pode facilmente deixar-se enganar. “A componente realista está lá, mas a sua abordagem é sobretudo humanista porque ele faz uma fotografia muito próxima das pessoas”, diz Emília Tavares, comissária d’O Fardo das Imagens (1945-1953), patente do Museu do Chiado, em Lisboa.

Passadas muitas horas a percorrer o espólio de Adelino Lyon de Castro (1910-1953), doado ao Museu do Chiado há dois anos pelo seu sobrinho, Tito, na sequência da exposição Batalha de Sombras (Museu do Neo-Realismo, Vila Franca de Xira, 2009), Emília Tavares acabou por escolher cerca de 70 fotografias das 3500 imagens disponíveis em provas e negativos, guardadas em dezenas e dezenas de envelopes que o autor nunca perdeu tempo a identificar. Fundador, com o irmão Francisco, das Publicações Europa-América, Lyon de Castro era um amador, como muitos dos seus contemporâneos que faziam parte dos fotoclubes e participavam nos salões de fotografia, organizados pelo regime ou não. Mergulhar neste espólio que está aberto a investigadores e críticos, sublinha a comissária e conservadora do Museu do Chiado, permitiu identificar os temas dominantes da sua fotografia e perceber até que ponto ela pode ser vista como uma forma de resistência ao Estado Novo.

“O elemento diferenciador da fotografia de Adelino Lyon de Castro é a atenção e o cuidado que ele dedica ao tema do trabalho. Outros fotógrafos seus contemporâneos tratam dele, mas de forma mais esporádica, menos latente”, explica Emília Tavares. “E esse tratamento mais intenso é um reflexo ideológico. Ele mostra o que a fotografia do regime procura esconder.” Estão lá as crianças descalças e os trabalhadores “à jorna” que, apesar de tudo, insistem em ler, aparentemente para defender que a educação e a cultura eram um desejo do povo e podiam estar ao seu alcance e não apenas das elites. Estão lá os estivadores no porto ou os homens do campo, fisicamente deformados pelo peso das sacas que carregam aos ombros. Estão lá os pedintes e outros excluídos que Salazar se esforçava por confinar aos asilos do Estado ou das misericórdias, dizendo que a mendicidade não passava de um vício.

O título da exposição – O Fardo das Imagens – não decorre apenas da profusão de exemplares de homens e mulheres carregando cestos, tabuleiros e outros pesos que a comissária encontrou no conjunto que Tito Lyon de Castro doou ao museu. É sobretudo o resultado da leitura que deles é feita por Emília Tavares: “Estes corpos vergados pelo trabalho não ficam apenas disformes pelo esforço. É também a sua condição social de exclusão que os marca, que os transforma. Mas estas imagens, algumas delas quase épicas, são, ao mesmo tempo, de uma imensa dignidade, como se Adelino Lyon de Castro quisesse com elas mostrar que transportar um fardo aos ombros era uma forma de combater essa exclusão, uma maneira de resistir.”

Os barcos dos pescadores da Costa da Caparica, onde o fotógrafo passava grandes
temporadas a acampar com familiares e amigos, entre eles o sobrinho Tito, estão bem
representados, formando uma espécie de microfilme, que na exposição encontra paralelo na sequência do homem já velho que passeia na rua de uma aldeia por identificar ou na do grupo que se entrega à desfolhada.

Humanismo do pós-guerra
Nestas micro-histórias, torna-se claro que a fotografia de Adelino Lyon de Castro vai da encenação mais cuidada, com uma grande preocupação geométrica, em que tudo parece perfeitamente arrumado no espaço, como no caso das mulheres que vendem peixe numa banca de rua, ao quase instantâneo. “Muitos dos seus retratos parecem apanhar o retratado de surpresa, mas outros têm-no em pose, quase como se Adelino fizesse da natureza um estúdio.”

Era na natureza, aliás, que se sentia bem. Praticante de atletismo, basquetebol e até rugby, Lyon de Castro privilegiava o campismo porque ele lhe dava um contacto mais directo com o campo ou o mar, e servia, ao mesmo tempo, os “ideários de liberdade e de companheirismo” que para ele eram tão importantes.

Ex-militante do Partido Comunista Português desde 1939, continuava a publicar com o irmão na Europa-América livros que o regime de Salazar condenava e a dar espaço a escritores como José Cardoso Pires, Mário Dionísio ou José Régio no Ler – Jornal de Letras, Artes e Ciências, que criou com Francisco em 1952 (ele era editor, o irmão o director) e que a censura viria a suspender um ano mais tarde, a pretexto da sua morte.

“Nos seus excluídos há um grande abandono, um imenso desalento, uma angústia existencial… São fotografias com uma grande carga emocional, mas muito ricas do ponto de vista formal e ideológico”, diz a comissária. “Têm tudo a ver com o grande movimento humanista da fotografia do pós-guerra.”

A relação de grande cumplicidade que deveria estabelecer com quem retratava – “ficamos com a sensação de que ele precisava de conhecer e compreender o que estava a fotografar”, fosse uma situação ou uma pessoa – era uma das características do processo de trabalho de Lyon de Castro, área que a exposição quer dar a conhecer, através das provas que têm marcados a caneta os enquadramentos que pretendia, ou de outras em que se percebe, numa ampliação posterior, que fez questão de vincar os contrastes, tornando os negros mais densos (particularmente evidente na fotografia de uma mulher sobre um pequeno pontão, junto à água).

A comissária, que chegou a pensar chamar à exposição Imagens para uma Romântica Revolução, não deixa de sublinhar “a realidade poetizada” de fotografias como Lavadeiras do Mondego ou Ex-Homens, explicando que havia por parte destes fotógrafos que se opunham ao regime um desejo de aproximação ao povo que acaba por se cumprir sobretudo num sentido: “A fotografia sempre foi de difícil assimilação e marginal. Mário Dionísio escrevia já sobre a possibilidade do olhar do fotógrafo alterar a própria realidade, mas isso era difícil de explicar à população em geral, que não sabia ler. Na utilização da fotografia como veículo de propaganda ideológica, o Estado Novo foi muitíssimo mais eficaz do que os seus opositores.”

E, para o comprovar, basta ver as fotografias saídas da colecção do Museu de Arte Popular que Emília Tavares escolheu para entrarem em diálogo com as de Adelino Lyon de Castro, ao lado de outra de Carlos Relvas e de pinturas de Mário Eloy, Eduardo Viana e Abel Salazar.

 
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